Fisiopatologia da Hemocromatose

Mecanismos Bioquímicos e Celulares da Sobrecarga Férrica Sistêmica

Consulta Padrão Diamante (CPD) para Especialistas


 1. Introdução

A hemocromatose representa um distúrbio de homeostase do ferro caracterizado por uma absorção intestinal exacerbada e um acúmulo progressivo de ferro nos tecidos, com consequente disfunção orgânica multissistêmica. O distúrbio central reside na regulação da hepcidina, principal hormônio regulador do metabolismo do ferro. Esta seção tem como objetivo explicar os fundamentos bioquímicos e moleculares que sustentam o processo patológico da hemocromatose, fornecendo uma análise de alto nível para profissionais de medicina interna, hematologia, hepatologia e endocrinologia.


 2. Regulação Normal do Ferro e Papel da Hepcidina

O ferro é absorvido predominantemente no duodeno proximal, através de dois mecanismos distintos:

  • Ferro heme (Fe2+): absorvido via transportadores específicos (HCP1)

  • Ferro não-heme (Fe3+): reduzido a Fe2+ por Dcytb, transportado por DMT1 (Divalent Metal Transporter-1)

A exportação do ferro entérico para o plasma é mediada exclusivamente por ferroportina (FPN1). A hepcidina, produzida nos hepatócitos em resposta ao aumento do ferro e à inflamação (via IL-6), liga-se à ferroportina e induz sua internalização e degradação, bloqueando a saída do ferro para a circulação.

O eixo regulador pode ser resumido por:

  • Aumento da hepcidina → retenção de ferro intracelular

  • Redução da hepcidina → liberação sistêmica e acúmulo tecidual


 3. Mutações e a Falha na Produção de Hepcidina

As principais variantes genéticas da hemocromatose atuam diretamente ou indiretamente na sinalização da hepcidina:

Tipo 1 (HFE):

  • Mutação C282Y impede a interação funcional de HFE com TfR1/TfR2, prejudicando a sinalização para produção de hepcidina

Tipo 2A/B (Juvenil):

  • Mutações em HJV (hemojuvelina) e HAMP (hepcidina) levam à ausência quase total de hepcidina, com fenótipos agressivos precoces

Tipo 3 (TfR2):

  • Mutação no receptor da transferrina tipo 2 impede a detecção de ferro sérico pelo fígado

Tipo 4 (SLC40A1):

  • Mutações na ferroportina tornam-na resistente à hepcidina (tipo 4B) ou disfuncional (tipo 4A)


🚀 4. Fisiopatologia da Impregnação Tecidual Progressiva

a) Sobrecarga Plasmática e Saturamento da Transferrina

  • A absorção intestinal aumentada promove elevação do ferro sérico

  • A transferrina atinge saturação >60%, liberando ferro não-transferrina ligado (NTBI)

  • O NTBI é altamente reativo e entra nas células via transportadores não regulados (ZIP14, DMT1, L-type Ca2+ channel)

b) Depósito Intracelular e Estresse Oxidativo

  • O ferro se acumula em mitocôndrias, lisossomos e retículo endoplasmático

  • Catalisa a reação de Fenton:

    • Fe2+ + H2O2 → Fe3+ + OH• + OH−

  • Gera espécies reativas de oxigênio (ROS), danificando DNA, lipídios e proteínas

c) Ativação Celular Patológica

  • Células de Kuppfer e estelato hepático são ativadas

  • Produção de TGF-β, IL-1β, TNF-α

  • Indução de apoptose, necroptose e fibrogênese

d) Fase Terminal: Lesão Estrutural e Funcional

  • Fibrose hepática progressiva → cirrose

  • Dano miocárdico → insuficiência cardíaca

  • Destruição das ilhotas pancreáticas → diabetes

  • Agressão à adenohipófise → hipogonadismo


 5. Sinais Laboratoriais da Desregulação Fisiopatológica

ParâmetroValorInterpretação
Ferritina>300 ng/mL (H) / >200 (M)Indica sobrecarga
Saturação da transferrina>45-60%Elevação do ferro livre
NTBI / LPI (ferro lábil)DetectáveisPresença de ferro tóxico
T2* MRI hepática / cardíacaReduzidoQuantifica sobrecarga

 6. Conclusão

A hemocromatose é um distúrbio de regulação da hepcidina que promove absorção descontrolada de ferro e consequente toxicidade sistêmica. A agressão é insidiosa, bioquimicamente rastreável e reversível se detectada precocemente. O entendimento profundo da fisiopatologia é essencial para a implementação de terapias direcionadas e estratégias preventivas.


7. Referências CPD

  • Nemeth E, Ganz T. Hepcidin-ferroportin interaction controls systemic iron homeostasis. Science. 2004;306(5704):2090-3.

  • Pietrangelo A. Genetics, genetic testing, and management of hemochromatosis: 15 years since hepcidin. Gastroenterology. 2015;149(5):1240-1251.

  • EASL Clinical Practice Guidelines. Hemochromatosis. J Hepatol. 2022;77:479–502.

  • Fleming RE, Ponka P. Iron overload in human disease. N Engl J Med. 2012;366:348–359.

  • Brissot P, Loreal O. Iron metabolism and related genetic diseases: A cleared land, keeping mysteries. J Hepatol. 2021;75(3):675–685.