⚖️ Fisiopatologia da Hemocromatose
Mecanismos Bioquímicos e Celulares da Sobrecarga Férrica Sistêmica
Consulta Padrão Diamante (CPD) para Especialistas
🔢 1. Introdução
A hemocromatose representa um distúrbio de homeostase do ferro caracterizado por uma absorção intestinal exacerbada e um acúmulo progressivo de ferro nos tecidos, com consequente disfunção orgânica multissistêmica. O distúrbio central reside na regulação da hepcidina, principal hormônio regulador do metabolismo do ferro. Esta seção tem como objetivo explicar os fundamentos bioquímicos e moleculares que sustentam o processo patológico da hemocromatose, fornecendo uma análise de alto nível para profissionais de medicina interna, hematologia, hepatologia e endocrinologia.
🔬 2. Regulação Normal do Ferro e Papel da Hepcidina
O ferro é absorvido predominantemente no duodeno proximal, através de dois mecanismos distintos:
Ferro heme (Fe2+): absorvido via transportadores específicos (HCP1)
Ferro não-heme (Fe3+): reduzido a Fe2+ por Dcytb, transportado por DMT1 (Divalent Metal Transporter-1)
A exportação do ferro entérico para o plasma é mediada exclusivamente por ferroportina (FPN1). A hepcidina, produzida nos hepatócitos em resposta ao aumento do ferro e à inflamação (via IL-6), liga-se à ferroportina e induz sua internalização e degradação, bloqueando a saída do ferro para a circulação.
O eixo regulador pode ser resumido por:
Aumento da hepcidina → retenção de ferro intracelular
Redução da hepcidina → liberação sistêmica e acúmulo tecidual
🚑 3. Mutações e a Falha na Produção de Hepcidina
As principais variantes genéticas da hemocromatose atuam diretamente ou indiretamente na sinalização da hepcidina:
Tipo 1 (HFE):
Mutação C282Y impede a interação funcional de HFE com TfR1/TfR2, prejudicando a sinalização para produção de hepcidina
Tipo 2A/B (Juvenil):
Mutações em HJV (hemojuvelina) e HAMP (hepcidina) levam à ausência quase total de hepcidina, com fenótipos agressivos precoces
Tipo 3 (TfR2):
Mutação no receptor da transferrina tipo 2 impede a detecção de ferro sérico pelo fígado
Tipo 4 (SLC40A1):
Mutações na ferroportina tornam-na resistente à hepcidina (tipo 4B) ou disfuncional (tipo 4A)
🚀 4. Fisiopatologia da Impregnação Tecidual Progressiva
a) Sobrecarga Plasmática e Saturamento da Transferrina
A absorção intestinal aumentada promove elevação do ferro sérico
A transferrina atinge saturação >60%, liberando ferro não-transferrina ligado (NTBI)
O NTBI é altamente reativo e entra nas células via transportadores não regulados (ZIP14, DMT1, L-type Ca2+ channel)
b) Depósito Intracelular e Estresse Oxidativo
O ferro se acumula em mitocôndrias, lisossomos e retículo endoplasmático
Catalisa a reação de Fenton:
Fe2+ + H2O2 → Fe3+ + OH• + OH−
Gera espécies reativas de oxigênio (ROS), danificando DNA, lipídios e proteínas
c) Ativação Celular Patológica
Células de Kuppfer e estelato hepático são ativadas
Produção de TGF-β, IL-1β, TNF-α
Indução de apoptose, necroptose e fibrogênese
d) Fase Terminal: Lesão Estrutural e Funcional
Fibrose hepática progressiva → cirrose
Dano miocárdico → insuficiência cardíaca
Destruição das ilhotas pancreáticas → diabetes
Agressão à adenohipófise → hipogonadismo
🔍 5. Sinais Laboratoriais da Desregulação Fisiopatológica
Parâmetro | Valor | Interpretação |
---|---|---|
Ferritina | >300 ng/mL (H) / >200 (M) | Indica sobrecarga |
Saturação da transferrina | >45-60% | Elevação do ferro livre |
NTBI / LPI (ferro lábil) | Detectáveis | Presença de ferro tóxico |
T2* MRI hepática / cardíaca | Reduzido | Quantifica sobrecarga |
🔧 6. Conclusão
A hemocromatose é um distúrbio de regulação da hepcidina que promove absorção descontrolada de ferro e consequente toxicidade sistêmica. A agressão é insidiosa, bioquimicamente rastreável e reversível se detectada precocemente. O entendimento profundo da fisiopatologia é essencial para a implementação de terapias direcionadas e estratégias preventivas.
📄 7. Referências CPD
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Fleming RE, Ponka P. Iron overload in human disease. N Engl J Med. 2012;366:348–359.
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