Efeitos Celulares da Sobrecarga de Ferro na Hemocromatose

1. Introdução

A hemocromatose não se limita a um distúrbio do metabolismo sistêmico do ferro. 

Em seu núcleo, ela é uma doença celular, cuja progressão se dá por meio da impregnação do ferro intracelular, levando a um desequilíbrio redox, disfunção organelar e colapso fisiológico progressivo

Esta seção examina em detalhes como a sobrecarga de ferro afeta a célula humana, suas organelas e a fisiologia bioquímica, revelando um panorama microscópico essencial à compreensão macroscópica da doença.


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2 – Compartimentos Celulares Afetados na Hemocromatose

A hemocromatose deve ser compreendida como uma condição cuja essência é celular. Embora sua expressão clínica se manifeste em órgãos e sistemas, é no nível subcelular que o excesso de ferro exerce seus efeitos mais lesivos, iniciando um ciclo de disfunção organelar progressiva, inflamação estéril e morte celular. A seguir, são detalhados os compartimentos intracelulares mais afetados e os principais mecanismos fisiopatológicos envolvidos.


🧪 1. Citosol – Saturação do Pool Lábil de Ferro (LIP)

O ferro intracelular circula no citosol como parte do pool lábil de ferro (LIP), um conjunto de íons Fe²⁺ fracamente ligados, disponíveis para reações celulares. Quando esse pool é saturado:

  • O Fe²⁺ passa a participar intensamente da reação de Fenton, gerando radicais hidroxila (•OH);

  • Aumenta-se o estresse oxidativo citoplasmático;

  • Ocorre ativação de inflamassomas (ex: NLRP3), induzindo inflamação crônica mesmo na ausência de patógenos;

  • Proteínas, enzimas e membranas celulares tornam-se alvos da oxidação.


⚛️ 2. Mitocôndrias – Epicentro da Disfunção Bioenergética

As mitocôndrias são o principal destino do ferro intracelular funcional. Contudo, no contexto da hemocromatose:

  • O ferro mitocondrial em excesso promove formação de superóxido (O₂⁻) e peroxidação lipídica da cardiolipina, uma fosfolipídeo essencial da membrana mitocondrial interna;

  • Induz a liberação do citocromo c → apoptose;

  • Causa colapso da cadeia respiratória e depleção de ATP;

  • Contribui para morte celular por apoptose, necroptose e ferroptose;

  • Está fortemente relacionado à fadiga crônica e miocardiopatias oxidativas observadas na HH.


🧫 3. Lisossomos – Ferritofagia e Instabilidade Digestiva

Os lisossomos são organelas ácidas responsáveis pela digestão de macromoléculas e reciclagem de ferro via dois processos:

  • Ferritofagia: degradação da ferritina mediada por autofagia seletiva (via NCOA4);

  • Hemofagia: degradação de heme proveniente de hemácias ou hemoproteínas celulares.

Na hemocromatose:

  • Há acúmulo maciço de ferro nos lisossomos, formando depósitos insolúveis de hemossiderina;

  • A membrana lisossomal torna-se instável, levando à sua ruptura;

  • Hidrolases lisossomais são liberadas no citosol → necrose celular não programada;

  • Esse processo alimenta uma inflamação estéril crônica e amplifica o dano tecidual.


🧠 4. Núcleo Celular – Lesão Oxidativa e Instabilidade Genômica

O ferro que alcança o núcleo afeta diretamente o DNA e os mecanismos de reparo:

  • Gera 8-hidroxi-desoxiguanosina (8-OHdG), marcador clássico de dano oxidativo ao DNA;

  • Inibe enzimas de reparo como PARP e BRCA1;

  • Induz mutações somáticas, aneuploidias e senescência celular (via p53, p16 e p21);

  • Essas alterações estão implicadas na carcinogênese hepática e pancreática relacionada à HH.


🧵 5. Retículo Endoplasmático – Estresse Proteico e Degeneração

O retículo endoplasmático (RE) é responsável pela síntese, dobramento e exportação de proteínas. O ferro interfere nesse equilíbrio:

  • Promove acúmulo de proteínas mal dobradas, ativando a resposta UPR (Unfolded Protein Response);

  • Prolongado estresse do RE leva à ativação de vias apoptóticas;

  • Está implicado em neurodegeneração e na disfunção de células beta pancreáticas;

  • É uma das vias que conecta a hemocromatose à resistência à insulina.


📌 Considerações Finais

A compreensão da topografia intracelular da toxicidade do ferro permite visualizar a hemocromatose como uma doença de lesão redox generalizada, cuja gravidade depende da carga férrica total, do tempo de exposição, e da vulnerabilidade tecidual.

Os lisossomos e as mitocôndrias são alvos precoces e críticos, sendo que seu colapso precipita processos de morte celular e inflamação persistente. A progressão orgânica da hemocromatose nada mais é do que o reflexo, em macroescala, desse ciclo contínuo de lesão celular subclínica silenciosa.

3. Mecanismos de Lesão Celular

  • Reação de Fenton → geração de •OH → dano oxidativo a lipídios, DNA e proteínas

  • Desbalanço redox → ativação de vias inflamatórias (NF-κB, MAPK)

  • Ferro não transferrina-ligado (NTBI) → penetração passiva em células não reguladas

  • Inflamação crônica → perpetuação do dano tecidual


 4. Consequências Funcionais

  • Morte celular por apoptose, necroptose ou ferroptose

  • Senescência celular precoce

  • Ativação de fibrose (via TGF-β1, colágeno tipo I)

  • Disfunção tecidual multissistêmica


 5. Fenômeno da Ferroptose

A ferroptose é um tipo de morte celular dependente de ferro e associada à peroxidação lipídica:

  • Inibição da enzima GPX4 (glutationa peroxidase 4)

  • Depleção de glutationa reduzida (GSH)

  • Acúmulo de peróxidos lipídicos tóxicos

  • Associada a lesões hepáticas, cardíacas e neurológicas na HH



 6. Referências Científicas

  • Torti SV, Torti FM. Iron and cancer: more ore to be mined. Nat Rev Cancer. 2013.

  • Gao M, Yi J. Role of mitochondria in ferroptosis. Mol Cell. 2021.

  • Wang H et al. Characterization of ferroptosis in murine models of hemochromatosis. J Hepatol. 2022.

  • Dixon SJ et al. Ferroptosis: an iron-dependent form of nonapoptotic cell death. Cell. 2012.

  • Mancias JD et al. Ferritinophagy via NCOA4 links iron homeostasis to autophagy. Nature. 2014.