Diagnóstico das Hemocromatoses Hereditárias 

 


📘 1. Introdução

O diagnóstico das hemocromatoses hereditárias é o ponto de inflexão clínico mais decisivo no manejo da sobrecarga férrica. O conhecimento limitado sobre as formas não-HFE, aliada à falta de acesso a exames especializados, leva a um número elevado de diagnósticos equivocados ou atrasados. Este capítulo tem como objetivo fornecer um roteiro preciso, validado e completo para o diagnóstico de todas as variantes conhecidas, de acordo com a literatura médica internacional.


🧪 2. Etapas do Diagnóstico – Algoritmo Padrão

Etapa 1 – Avaliação Inicial

ExameValores SugeridosInterpretação
Ferritina sérica>300 ng/mL (homem) / >200 ng/mL (mulher)Sugerido sobrecarga
Saturação da transferrina>45%Alta probabilidade
Ferro sérico / TIBCFerro ↑, TIBC ↓Saturação ↑

OBS: Na fase inflamatória, a ferritina pode estar elevada mesmo sem sobrecarga (ver Cap. Ferritina & COVID).

Etapa 2 – Exclusão de Causas Secundárias

  • Transfusões crônicas

  • Hepatopatias (NASH, HCV, álcool)

  • Anemias diseritropoiéticas

  • Hemólise crônica

  • Excesso de ferro medicamentoso

Etapa 3 – Testes Genéticos Direcionados

a) Hemocromatose tipo 1 (HFE)
  • Teste molecular: C282Y, H63D, S65C

Importância clínica da zigosidade:

  • Homozigose para C282Y: fortemente associada à hemocromatose clássica, especialmente em homens; risco elevado de sobrecarga grave.

  • Heterozigose C282Y ou H63D isoladas: geralmente não causam doença clinicamente significativa isoladamente, mas podem contribuir em presença de outros fatores genéticos ou ambientais.

  • Heterozigose composta (C282Y/H63D): risco intermediário de sobrecarga moderada; exige avaliação clínica e laboratorial contínua.

  • Presença de múltiplas mutações (ex: C282Y + S65C ou H63D + S65C): pode haver efeito aditivo ou modulador no fenótipo clínico.

b) Hemocromatose tipo 2 (Juvenil)
  • Gene HJV (hemojuvelina) → tipo 2A

  • Gene HAMP (hepcidina) → tipo 2B

  • Mecanismo: falência na produção de hepcidina → sobrecarga agressiva

  • Testes: sequenciamento direcionado ou painel de NGS

c) Hemocromatose tipo 3
  • Gene TfR2 (receptor da transferrina tipo 2)

  • Técnica: sequenciamento completo do gene

  • Valor clínico: importante em adultos jovens com ferritina >1000 ng/mL e sem mutações HFE

d) Hemocromatose tipo 4
  • Gene SLC40A1 (ferroportina)

  • Sequenciamento completo – pesquisa de mutações de ganho ou perda de função

  • Tipo 4A: ferritina alta, transferrina normal

  • Tipo 4B: transferrina saturada, ferritina alta

e) Outras variantes raras
  • Genes: FTL (ferritina leve), CP (ceruloplasmina), SLC11A2 (DMT1)

  • Exames: painéis de NGS para sobrecarga férrica hereditária, ou exoma clínico em casos não resolvidos

f) Ferramentas Complementares Genéticas – Expansão Detalhada

🔬 1. Painéis multigênicos NGS para Hemocromatose não-HFE

  • Utilizam a tecnologia de Next Generation Sequencing (NGS) para investigar simultaneamente mutações em genes associados à sobrecarga férrica.

  • Incluem genes como: HJV, HAMP, TfR2, SLC40A1, FTL, CP, SLC11A2, entre outros.

  • Indicado para pacientes com quadro clínico sugestivo e teste HFE negativo.

  • Vantagens:

    • Alta sensibilidade

    • Detecção de variantes raras ou combinadas

    • Permite diagnóstico precoce em familiares

🧬 2. MLPA (Multiplex Ligation-dependent Probe Amplification)

  • Técnica complementar que detecta deleções ou duplicações gênicas que não são observadas por sequenciamento convencional.

  • Utilizada principalmente em laboratórios genéticos de referência.

  • Exemplo: pode detectar deleções parciais em SLC40A1, que causam hemocromatose do tipo ferroportina com fenótipo atípico.

🧬 3. Exoma Clínico Completo

  • Sequenciamento de todas as regiões codificantes (exons) do genoma humano.

  • Utilizado em casos sem diagnóstico claro após painel multigênico, ou em quadros sindrômicos com múltiplas manifestações.

  • Permite:

    • Diagnóstico de variantes ultra-raras

    • Identificação de genes ainda não classicamente associados à hemocromatose

    • Reanálise futura à medida que novas descobertas científicas forem publicadas

🧬 4. Bancos de Dados Genômicos (ClinVar, HGMD)

  • Ferramentas indispensáveis na interpretação clínica das variantes identificadas.

  • ClinVar (NIH): banco público que correlaciona variantes genéticas a fenótipos clínicos

  • HGMD (Human Gene Mutation Database): base de dados privada com curadoria de mutações patogênicas publicadas

  • Auxiliam na classificação da mutação como:

    • Patogênica

    • Provavelmente patogênica

    • Significado incerto (VUS)

    • Benigna

  • Permitem comparações globais de frequência, penetrância e expressividade clínica das mutações.

g) Indução do raciocínio clínico genético
  • Caso: ferritina >1000 ng/mL, transferrina >50%, HFE negativo → suspeitar tipo 2 ou 3

  • Caso: ferritina alta, transferrina normal, história familiar → tipo 4A (ferroportina)

  • Caso: início precoce, hipogonadismo, falência cardíaca → testar HJV e HAMP