1. Introdução

O endotélio, tecido altamente sensível às alterações do microambiente bioquímico, atua como órgão imunometabólico difuso, sendo responsável pela manutenção da hemodinâmica, trocas celulares, homeostase vascular, inflamação, trombose e angiogênese. Na hemocromatose hereditária (HH), o excesso de ferro compromete profundamente a integridade endotelial, promovendo disfunção sistêmica que contribui silenciosamente para múltiplas complicações clínicas.


2. Fisiopatologia da Agressão Endotelial pelo Ferro

a) Sobrecarga Férrica e Estresse Oxidativo Endotelial

  • O ferro livre (NTBI – Non-Transferrin Bound Iron) é captado por receptores endoteliais (ZIP14, DMT1).

  • No citoplasma, catalisa a reação de Fenton, gerando radicais hidroxila (•OH).

  • Dano direto ao glicocálix endotelial e lipoperoxidação de membranas.

  • Redução da biodisponibilidade de óxido nítrico (NO) → vasoconstrição e hipertensão subclínica.

b) Disfunção de Barreira

  • A desorganização das junções estreitas (claudinas, ocludinas) aumenta a permeabilidade vascular.

  • Exacerbação da translocação bacteriana e de endotoxinas → ativação de TLR4 e IL-6.

  • Promove infiltração inflamatória subendotelial (macrófagos, neutrófilos).

c) Endoteliopatia Procoagulante

  • Upregulation de fatores pró-trombóticos: PAI-1, fator tecidual, von Willebrand

  • Inibição da trombomodulina e da proteína C ativada

  • Ativação de plaquetas e formação de microtrombos em órgãos alvo

d) Remodelamento Vascular e Fibrose

  • Estímulo crônico do TGF-β1 induz transição endotelial-mesenquimal (EndMT)

  • Células endoteliais adquirem fenótipo miofibroblástico, contribuindo para fibrose hepática e cardíaca

  • Formação de neovasos patológicos (angiogênese aberrante)


3. Manifestações Clínicas Relacionadas

  • Hipertensão leve resistente

  • Aterosclerose precoce

  • Disfunção erétil por insuficiência microvascular

  • Síndrome hepato-pulmonar e hipertensão pulmonar

  • Vasculites subclínicas ou mistas (ex: púrpura, livedo, Raynaud-like)

  • Fenômenos trombóticos inexplicados em jovens


4. Índice de Gravidade da Disfunção Endotelial na HH

 

EstágioCaracterísticasPrevalência EstimadaConsequências
I – CompensadoAlterações bioquímicas subclínicas (↓ NO, ↑ ICAM-1)~40% dos pacientes com ferritina >500 ng/mLAssintomático, mas predisposto
II – Disfunção ModeradaDisfunção endotelial funcional com vasoconstrição e disfunção microcirculatória~25% dos pacientes não tratadosHT leve, distúrbios eréteis, fadiga vascular
III – AvançadoPerda de barreira, EndMT, microtrombos, remodelamento~10% dos pacientes avançadosComplicações sistêmicas graves: fibrose, trombose, HTP

5. Diagnóstico

  • Marcadores endoteliais plasmáticos:

    • ↑ ICAM-1, VCAM-1

    • ↑ Endotelina-1

    • ↓ NO circulante

    • ↑ E-selectina

  • Ultrassonografia Doppler de carótidas ou vasos renais

  • Elastografia hepática com função endotelial (wave speed stiffness)

  • Biópsia com marcação de moléculas de adesão (CD31, vWF)6. Tratamento

    • Flebotomias precoces → redução de ferritina < 50 ng/mL

    • Suporte endotelial com:

      • N-acetilcisteína, arginina, curcumina

      • Ativadores da via eNOS (L-citrulina, resveratrol)

    • Controle de cofatores: tabagismo, dislipidemia, glicemia

    • Avaliar uso de quelantes se flebotomia contraindicada


6. Tratamento

  • Flebotomias precoces → redução de ferritina.

  • Suporte endotelial com:

    • N-acetilcisteína, arginina, curcumina

    • Ativadores da via eNOS (L-citrulina, resveratrol)

  • Controle de cofatores: tabagismo, dislipidemia, glicemia

  • Avaliar uso de quelantes se flebotomia contraindicada


7. Prognóstico

  • A disfunção endotelial persistente está associada a:

    • Maior risco cardiovascular

    • Progressão acelerada da fibrose hepática e miocárdica

    • Mortalidade relacionada a eventos tromboembólicos silenciosos

  • Diagnóstico precoce melhora sobrevida e função vascular


 

8. Referências Científicas Atualizadas

  • Vinchi F et al. Iron-induced endothelial dysfunction in hereditary hemochromatosis. Blood. 2021.

  • Brissot P et al. The endothelial frontier in iron overload syndromes. J Hepatol. 2022.

  • Camaschella C. Iron overload and vascular remodeling: From gene to vessel wall. Circulation Res. 2023.

  • Girelli D. Redox signaling and endothelial dysfunction in iron diseases. Nat Rev Cardiol. 2022.