
1. Manifestações Clínicas Hepáticas
A expressão hepática da hemocromatose hereditária (HH) é altamente variável e insidiosa, refletindo a interação entre a carga genética, o tempo de exposição à sobrecarga de ferro, fatores ambientais e epigenéticos.
IGDH – Índice de Gravidade das Doenças Hepáticas na HH
Grau | Descrição | Prevalência Estimada |
---|---|---|
0 | Assintomático (sem sintomas, função hepática normal, apenas hipersaturação de transferrina) | 25–30% |
I | Alterações bioquímicas isoladas (ALT, AST, GGT discretamente elevadas; ferritina > 300 ng/mL) | 20–25% |
II | Hepatomegalia / esteatose leve a moderada (clínica e ultrassonografia) | 20% |
III | Fibrose periportal ou estadiamento F2–F3 (elastografia hepática > 8 kPa) | 15% |
IV | Cirrose compensada / carcinoma hepatocelular (CHC) inicial | 5–10% |
V | Cirrose descompensada / CHC avançado / insuficiência hepática | 2–5% |
2. Fisiopatologia
A principal via de agressão hepática ocorre por impregnação de ferro nos hepatócitos periportais:
O ferro promove reatividade oxidativa (reação de Fenton).
Induz dano mitocondrial, peroxidação lipídica e mutações.
Ativa células estreladas hepáticas (HSC) via TGF-β, promovendo fibrogênese.
Suprime hepcidina e ativa vias inflamatórias (NF-κB).
O estresse oxidativo crônico gera apoptose, senescência e remodelamento do parênquima hepático.
3. Diagnóstico
a) Exames Laboratoriais
Ferritina > 300 ng/mL (homens); > 200 ng/mL (mulheres).
Saturação da transferrina > 45%.
ALT/AST levemente elevadas.
GGT e fosfatase alcalina: variáveis.MDPI
b) Exames de Imagem
Ultrassonografia: aumento do lobo hepático direito, esteatose, heterogeneidade.
Elastografia hepática (FibroScan):
F0–F1: < 6,5 kPa.
F2: 7–8,5 kPa.
F3: 8,6–11,9 kPa.
F4: > 12 kPa.
Ressonância magnética com T2*: quantifica a deposição de ferro.
c) Exames Invasivos
Biópsia hepática: reservada para casos de dúvida diagnóstica ou suspeita de CHC.
4. Tratamento
Flebotomia (sangrias terapêuticas): objetivo = ferritina < 50 ng/mL.
Avaliação periódica com elastografia hepática.
Evitar hepatotóxicos: álcool, drogas, paracetamol.
Dieta com restrição de ferro heme e redutores (vitamina C).
Vacinação contra hepatites B e A.
CHC: vigilância com alfafetoproteína + ultrassonografia a cada 6 meses.
5. Possíveis Complicações
Cirrose hepática irreversível.
Carcinoma hepatocelular (CHC).
Hipertensão portal.
Ascite, varizes esofágicas, encefalopatia hepática.
Coagulopatia e hipovitaminose K.
6. Prognóstico
O prognóstico é excelente se tratado precocemente.
Cirrose: risco de CHC aumenta 20–200 vezes.
A retirada precoce de ferro pode regredir fibrose em estágios iniciais.
7. Histologia Macroscópica e Microscópica
Macroscópica: hepatomegalia, coloração acastanhada.
Microscópica: deposição de grânulos de hemossiderina periportal (zona 1), fibrose em ponte, micronódulos, necroinflamação.
8. Aspectos Psicológicos
Impacto do diagnóstico de uma “doença hepática potencialmente grave”.
Medo de evoluir para cirrose e CHC.
Efeitos da restrição social, alimentar e abstinência alcoólica.
Ansiedade e depressão nos estágios mais avançados.
Apoio multiprofissional e educação sobre reversibilidade são essenciais.
9. Referências Científicas Atualizadas
European Association for the Study of the Liver (EASL). Clinical Practice Guidelines on Haemochromatosis. J Hepatol. 2022;77(2):479–502
Girelli D, Busti F, Brissot P, Cabantchik I, Muckenthaler MU, Porto G.
Iron overload, liver injury and fibrosis: Mechanisms and clinical impact.
Hepatology. 2022;76(6):1640-1655.
https://doi.org/10.1002/hep.32467Brissot P, Pietrangelo A, Adams PC, de Graaff B, McLaren CE, Loreal O.
Hepatic manifestations of hereditary hemochromatosis: pathophysiology, diagnosis and management.
Nat Rev Gastroenterol Hepatol. 2023;20(4):217-230.
https://doi.org/10.1038/s41575-022-00721-1Powell LW, Subramaniam VN, Yapp TR.
Clinical features, diagnosis, and management of hereditary hemochromatosis: insights from recent studies.
Clin Liver Dis. 2021;25(3):527-543.
https://doi.org/10.1016/j.cld.2021.04.003Piperno A, Pelucchi S, Mariani R.
Recent advances in understanding hereditary hemochromatosis: genetics, diagnosis, and treatment.
Blood Rev. 2022;55:100936.
https://doi.org/10.1016/j.blre.2022.100936Adams PC, Barton JC.
How I treat hemochromatosis.
Blood. 2022;140(3):271-279.
https://doi.org/10.1182/blood.2021014910Santos PCJL, Krieger JE, Pereira AC.
Molecular basis and genetic epidemiology of hereditary hemochromatosis in Brazil.
Clin Genet. 2020;97(2):212-220.
https://doi.org/10.1111/cge.13649Anderson GJ, Frazer DM.
Current understanding of iron homeostasis.
Am J Clin Nutr. 2023;117(4):601-613.
https://doi.org/10.1016/j.ajcnut.2023.02.014