Fisiopatologia da Hemocromatose

 


1. Por que o ferro vira vilão? – Panorama inicial

Imagine o ferro como uma moeda rara: indispensável para que nossas “fábricas” celulares (as mitocôndrias) gerem energia, mas corrosiva quando armazenada fora do cofre. Diferentemente de sódio ou potássio, o corpo não possui um sistema ativo para expulsar ferro. Toda a regulação depende de quanto absorvemos no intestino e de quanto reciclamos dos glóbulos vermelhos velhos.
Na hemocromatose acontece precisamente o contrário do que deveria: a “torneira” de entrada (absorção) e a “janela” de reciclagem ficam abertas demais, inundando a circulação e, depois, os tecidos.


2. O termostato-ferro: hepcidina e ferroportina

  • Hepcidina é um micro-hormônio produzido no fígado que “fecha” a exportação de ferro das células ligando-se à ferroportina (o único canal de saída).

  • Sempre que o estoque sobe ou surge inflamação, a hepcidina aumenta; se há anemia ou hipóxia, ela cai.

  • Nas formas clássicas de hemocromatose, a hepcidina é insuficiente ou ineficaz, como se o termostato quebrasse, deixando a calefação ligada em pleno verão.


3. De onde vem o problema? – Defeitos genéticos principais

TipoGeneFalha molecularHepcidinaIdade típica de inícioComentário clínico
Tipo 1 (“clássico HFE”)HFE C282Y/H63DSinal BMP-SMAD falha; fígado “não enxerga” ferro plasmático↓↓↓30–50 anosMaioria dos casos no Ocidente
Tipo 2A (juvenil HJV)HJVCo-receptor ausenteQuase zero< 20 anosBronzeamento precoce + cardiomiopatia
Tipo 2B (juvenil HAMP)HAMPHepcidina defeituosaQuase zero< 20 anosEvolução fulminante
Tipo 3TFR2Sensor hepático falho↓↓20–40 anosSemelhante ao HFE grave
Tipo 4A (ferroportina “preguiçosa”)SLC40A1 LOFFerroportina fraca; ferro preso em macrófagosNormal/↑VariávelFerritina alta, saturação menor
Tipo 4B (ferroportina “aberta”)SLC40A1 GOFCanal resiste à hepcidina30–50 anosParênquima hepático saturado

Adaptado de ISSI 2022 e GeneReviews 2024


4. Passo a passo do estrago – do intestino ao órgão-alvo

  1. Absorção desenfreada

    • Com pouca hepcidina, a ferroportina nos enterócitos continua exportando Fe²⁺; o fluxo diário sobe de 1 mg para 4–6 mg.

  2. Super-saturação da transferrina

    • Quando > 60 % das “carretas” transferrina estão cheias, aparece o NTBI (ferro não-ligado), um tipo de “carga perigosa” que penetra nas células sem controle via ZIP14.

  3. Depósito silencioso

    • Fígado, pâncreas, coração e articulações acumulam ferro em ferritina; quando o “cofre” estoura, forma-se hemossiderina, mais grosseira e menos inofensiva.

  4. Reação de Fenton e radical hidroxila

    • Fe²⁺ + H₂O₂ → Fe³⁺ + •OH → peroxidação lipídica; é como soltar fagulhas numa estante de combustível.

  5. Morte celular por ferroptose

    • Quando as defesas antioxidantes (glutationa, GPX4) falham, a célula entra em ferroptose: morre “fritando” suas próprias membranas lipídicas.

  6. Fibrose e cirrose

    • Hepatócitos mortos liberam citocinas; células estreladas produzem colágeno → tecido cicatricial; ao longo de anos, forma-se cirrose e aumenta o risco de carcinoma hepatocelular.

  7. Efeitos extra-hepáticos

    • Coração: depósito miocárdico gera cardiomiopatia dilatada e bloqueios de condução.

    • Pâncreas: destruição das ilhotas → diabetes “bronzeado”.

    • Articulações: ferro + cálcio no condro → condrocalcinose (dor e limitações).


5. Por que alguns adoecem mais rápido? – Modificadores

FatorEfeitoExemplo
Álcool ≥ 60 g/dia↑ permeabilidade intestinal; sinergia fibrogênicaCirrose mais precoce
Hepatite viralAcelera inflamação e mutagênese↑ risco HCC
Síndrome metabólicaEsteatose facilita fibroseMASLD + HH = “duplo golpe”
Sangue menstrual / gestaçãoPerda natural de ferroMulheres adoecem 10–15 anos depois
Polimorfismo TMPRSS6Modula hepcidina residualPode mitigar HH leve

6. Linha do tempo fisiopatológica (homem C282Y homo)

IdadeEventos bioquímicosAchados clínicos
0–15 aHepcidina já baixa, mas perdas de crescimento equilibramAssintomático
20–30 aTransferrina > 50 %; ferritina 300-500 ng/mLCansaço, AST/ALT discretas
35–45 aFerritina > 1 000 ng/mL; NTBI presenteMelanoderma, artralgia MCP
40–50 aFibrose F2-F3, HbA1c sobeDiabetes bronzeado
50–60 aCirrose, cardiomiopatia dilatadaRisco carcinoma ↑ (1–4 %/ano)

7. Intervenção terapêutica – onde atuam os tratamentos?

EstratégiaAlvo fisiopatológicoResultado esperadoSituação prática
FlebotomiaRemove Fe diretamente↓ ferritina, ↑ hepcidinaPadrão-ouro HH tipo 1
Quelantes orais (deferiprona)Sequestram NTBI↓ oxidação, ejeta Fe pela urinaIntolerância a sangrias
Mini-hepcidinasMimético hormonalFecha ferroportinaEm fase 2 clínica
siRNA TMPRSS6↑ hepcidina endógenaReduz absorçãoEstudos iniciais
Antioxidantes (MitoQ)Bloqueiam •OHProtegem mitocôndriaDados pré-clínicos

8. Resumo visual mental

Hepcidina baixa ⇒ ferroportina aberta ⇒ transferrina satura ⇒ NTBI invade células ⇒ radical livre explode ⇒ morte, fibrose e câncer.


9. Hyperlinks de referência

  1. Ganz T & Nemeth E. Iron Homeostasis and Disorders. Blood 2025

  2. StatPearls 2024 – Hemochromatosis

  3. GeneReviews 2024 – HFE Hemochromatosis

  4. ISSI Classification Update 2022

  5. Nature Rev 2024 – Ferroptosis & Iron Toxicity

  6. Cardiomyopathy in HH – Heart 2023

  7. Mini-hepcidin Trial – NCT05622033

Fisiopatologia da Hemocromatose

 


1. Visão Geral

A hemocromatose é um conjunto de síndromes de absorção intestinal desregulada ou reciclagem excessiva de ferro, levando a expansão incontrolada do pool plasmático e depósito parenquimatoso progressivo. O evento central em praticamente todas as formas é a deficiência relativa ou absoluta de hepcidina – hormônio hepático que normalmente liga-se a ferroportina (FPN1), promovendo sua internalização e bloqueando a saída de ferro dos enterócitos, macrófagos e hepatócitos. Sem hepcidina funcional, a ferroportina permanece aberta, despejando ferro na circulação. Ash PublicationsMillennium Medical Publishing


2. Eixo Hepcidina–Ferroportina

Passo fisiológicoReguladores chaveAlteração na hemocromatoseConsequência
Sinalização BMP-SMAD (HJV, HFE, TFR2)↑ ferro plasmático → BMP6 → SMAD1/5/8 → ↑ HAMP (gene da hepcidina)Mutação HFE C282Y, HJV, TFR2 ↓ sinalHepcidina baixa crônica
Sensor inflamatório (IL-6/JAK-STAT3)Infecção → ↑ hepcidinaMantidoAnemia de doença crônica, mas não interfere no HH clássico
Feedback eritropoiético (ERFE)Hipóxia / EPO → ERFE ↓ hepcidinaNormalExplica por que anemias hemolíticas podem mascarar HH
Ligação Hepcidina-FerroportinaHepcidina se liga no loop externo da FPNMutação SLC40A1 “ferroportin GOF” reduz afinidadeFerroportina resiste à degradação

Fonte resumida: Blood 2025;145:625-637 Ash Publications


3. Tipos Moleculares Principais

TipoGene (locus)HepcidinaInício clínicoDepósito predominante
Tipo 1 (Clássico)HFE (6p22)↓↓↓Adulto (30-50 a)Hepatócitos
Tipo 2A (Juvenil-HJV)HJV (1q21)Ausente< 20 aMiocárdio > fígado
Tipo 2B (Juvenil-HAMP)HAMP (19q13)Ausente< 20 aMiocárdio > fígado
Tipo 3TFR2 (7q22)↓↓20-40 aFígado, pâncreas
Tipo 4A (Ferroportina-LOF)SLC40A1Normal/↑VariávelMacrófagos (ferritina sérica modesta)
Tipo 4B (Ferroportina-GOF)SLC40A130-50 aParênquima hepático

Adaptado de GeneReviews 2024 e ISSI Classification 2022 CIB Centro de BiotecnologiaAsh Publications


4. Caminho do Excesso de Ferro até o Dano Tecidual

  1. Aumento da absorção (duodeno) → ferro plasmático transferrina-não-ligado (NTBI)

  2. Captação via ZIP14 em fígado, pâncreas, coração → sobrecarregando mitocôndrias

  3. Geração de pool lábil de ferro (LIP) → reação de Fenton (Fe²⁺ + H₂O₂ → •OH) → espécies reativas de oxigênio (ERO) ScienceDirect

  4. Peroxidação lipídica + ferroptose de hepatócitos, β-células e miócitos PMCNature

  5. Ativação de células estreladas → colágeno I, III → fibrosecirrose

  6. Mutagênese oxidativa → carcinogênese hepatocelular

  7. Depósito sinovial → condrocalcinose (artropatia)

  8. Lesão miocárdica → miocardiopatia dilatada & distúrbios de condução PubMed


5. Gradiente Celular de Toxicidade

Concentração LIP*Processos celulares ativadosResultado histopatológico
< 1 µMMetabolismo normalSem lesão
1-5 µMEstresse oxidativo subletalEsteatose microvesicular
5-10 µMFerroptose, necroinflamaçãoFibrose portal/perivenular
> 10 µMColapso mitocondrial, DNA damageCirrose, risco ↑ HCC

*LIP estimado por sonda calceína em modelos murinos (Nature 2024) Nature


6. Interação com Metabolismo e Inflamação

  • Metabólico: ferro potencializa lipotoxicidade → agrava steatotic liver disease (MASLD).

  • Imune: sobrecarga de ferro suprime macrófagos (via HIF-1α) e altera microbioma, predispondo infecções por Vibrio vulnificus.

  • Endócrino: ferro em hipófise → ↓ gonadotrofinas → hipogonadismo secundário.

  • Renal: apesar de menor deposição, NTBI promove lesão tubular subclínica em estágios tardios.


7. Pontos de Intervenção Farmacológica Emergentes

AlvoEstratégiaStatus
Mini-hepcidinasPeptídeos estáveis que mimetizam hepcidinaFase 2 (NCT05622033) Tandfonline
Inibidores TMPRSS6↑ hepcidina endógena via siRNAFase 1 concluída
Quelantes orais seletivos (vital contra NTBI)Deferiprona de liberação lentaEstudos pré-clínicos
Antioxidantes direcionados a mitocôndria (MitoQ)Reduz ROS, retarda fibroseDados animais promissores

8. Referências Principais (links ativos)

  1. [StatPearls 2024 – Hemochromatosis Overview] CIB Centro de Biotecnologia

  2. [Blood 2025 – Hepcidin/Ferroportin Axis] Ash Publications

  3. [GeneReviews 2024 – HFE Hemochromatosis] CIB Centro de Biotecnologia

  4. [ISSI Classification Update 2022] Ash Publications

  5. [Nature Rev 2024 – Iron Homeostasis & Ferroptosis] Nature

  6. [Oxidative Stress & Fenton Reaction – Sci Direct 2022] ScienceDirect

  7. [Cardiovascular Manifestations Review 2023] PubMed

  8. [Mini-hepcidins as Therapy 2024] Tandfonline