1. Definição e Introdução

A Hemocromatose Tipo I é a forma mais comum de hemocromatose hereditária no mundo ocidental, resultando de mutações no gene HFE, localizado no cromossomo 6p21.3, na região do Complexo Principal de Histocompatibilidade (MHC classe I).

  • Prevalência de portadores heterozigotos C282Y: 10% da população caucasiana.

  • Prevalência de homozigotos C282Y: 0,3% a 0,5% (1:200 a 1:300 indivíduos).

  • Responsável por mais de 80% dos casos clínicos diagnosticados de sobrecarga de ferro hereditária.


2. Papel Fisiológico do HFE – Atualização 2025

  • O HFE é uma glicoproteína transmembrana estruturalmente similar às proteínas MHC classe I.

  • No fígado e intestino delgado, o HFE se liga ao receptor da transferrina tipo 1 (TfR1).

  • Essa interação é crucial para modular a percepção do ferro plasmático pelas células hepáticas (hepatócitos).

  • Quando a transferrina carregada de ferro está elevada, o HFE:

    • Se dissocia do TfR1 e

    • Interage com o TfR2, ativando vias intracelulares (SMADs, BMP/SMAD signaling).

    • Resultado ➔ estimula a produção de hepcidina no fígado.

  • A hepcidina então:

    • Bloqueia a ferroportina nas células intestinais e macrófagos ➔ reduzindo a absorção intestinal e a liberação de ferro.

 Portanto, o HFE é uma chave moduladora da expressão de hepcidina e do equilíbrio férrico.


3. O Que Acontece nas Mutações do HFE

a) Mutação C282Y (c.845G>A; p.Cys282Tyr)

  • Substituição de cisteína por tirosina na posição 282.

  • Impede a formação de uma ponte dissulfeto crítica no HFE.

  • Como consequência:

    • O HFE mutante não consegue se ligar corretamente ao β2-microglobulina.

    • Fica retido no retículo endoplasmático.

    • Não é expresso na membrana celular ➔ perda funcional completa.

    • Redução crítica da produção de hepcidina ➔ hiperabsorção de ferro.

C282Y homozigose: forma mais grave, responsável pela maioria dos quadros clínicos clássicos.


b) Mutação H63D (c.187C>G; p.His63Asp)

  • Substituição de histidina por ácido aspártico na posição 63.

  • Preserva parcialmente a função do HFE.

  • Pode contribuir para disfunção leve da hepcidina, especialmente em combinação heterozigótica com C282Y (heterozigoto composto C282Y/H63D).

H63D homozigose isolada raramente causa sobrecarga de ferro significativa.


c) Mutação S65C (c.193A>T; p.Ser65Cys)

  • Substituição de serina por cisteína na posição 65.

  • Menor impacto funcional do que C282Y.

  • Quando combinada com C282Y (C282Y/S65C), pode haver formas leves de sobrecarga férrica.

S65C isolada é clinicamente irrelevante na maioria dos casos.


4. Fisiopatologia Detalhada

  • Ausência funcional de HFE ➔ hepatócitos não percebem a elevação da transferrina saturada.

  • Produção de hepcidina é insuficiente ➔ ferroportina permanece ativa ➔ absorção contínua de ferro no intestino.

  • Acúmulo progressivo de ferro em tecidos:

    • Fígado (zonas periportais inicialmente).

    • Pâncreas (células das ilhotas).

    • Coração (miocárdio).

    • Hipófise.

    • Pele.

 Ao longo dos anos, esse acúmulo provoca dano oxidativo, fibrose e falência orgânica.


5. Quadro Clínico Característico

Órgão/SistemaManifestações Típicas
FígadoHepatomegalia, fibrose, cirrose, carcinoma hepatocelular (CHC)
PâncreasDiabetes mellitus tipo 2 (diabetes bronzeado)
CoraçãoCardiomiopatia restritiva, insuficiência cardíaca congestiva
PeleHiperpigmentação cutânea (tom bronzeado)
Sistema endócrinoHipogonadismo hipogonadotrófico, hipotireoidismo
Sistema musculoesqueléticoArtralgias, especialmente metacarpofalângicas, artropatia degenerativa

 Sintomas Iniciais Típicos

  • Fadiga crônica.

  • Dores articulares.

  • Disfunção sexual (diminuição da libido, impotência).

  • Elevações discretas de transaminases (ALT, AST).


6. Diagnóstico

a) Exames Laboratoriais

  • Saturação da transferrina > 45% (homens e mulheres pós-menopausa).

  • Ferritina sérica:

    • 300 ng/mL em homens.

    • 200 ng/mL em mulheres.

  • Testes hepáticos (AST, ALT, GGT) podem estar discretamente elevados.

b) Genotipagem

  • Pesquisa de C282Y e H63D:

    • C282Y/C282Y = confirmação diagnóstica clássica.

    • C282Y/H63D = heterozigose composta, quadro mais leve ou intermediário.

    • H63D/H63D = relevância clínica incerta.

c) Imagem

  • Elastografia hepática (FibroScan®):

    • Avalia presença de fibrose hepática.

  • RMN T2*:

    • Avalia depósitos de ferro hepático e cardíaco.

d) Biópsia hepática

  • Reservada para casos com dúvida diagnóstica ou avaliação de fibrose em paciente não adequado para métodos não invasivos.


7. Protocolo Clínico de Investigação

  1. Saturação de transferrina elevada >45%.

  2. Ferritina >300 ng/mL (homens) ou >200 ng/mL (mulheres).

  3. Genotipagem HFE:

    • C282Y/C282Y confirma Tipo I clássico.

    • C282Y/H63D requer avaliação clínica e carga de ferro.

  4. Elastografia e/ou RMN T2* para estratificação de risco hepático.

  5. Iniciar tratamento se evidência de sobrecarga significativa.


8. Tratamento

  • Flebotomia terapêutica:

    • 400–500 mL de sangue a cada 1–2 semanas até ferritina <50 ng/mL.

  • Manutenção:

    • Flebotomias a cada 3–6 meses para manter ferritina entre 50–100 ng/mL.

  • Controle e vigilância:

    • Monitorizar função hepática, glicemia, função cardíaca e hormonais.

  • Acompanhamento de complicações:

    • Vigilância para CHC se houver cirrose.


9. Prognóstico

SituaçãoPrognóstico
Diagnóstico precoce e flebotomia regularExpectativa de vida normal
Diagnóstico tardio com cirrose estabelecidaRisco aumentado de CHC e mortalidade por insuficiência hepática

 Com tratamento precoce, a maioria dos pacientes pode ter vida normal.


 Referências Científicas Recentes 

  1. European Association for the Study of the Liver (EASL). Clinical Practice Guidelines for Hemochromatosis. J Hepatol. 2022.
    https://www.journal-of-hepatology.eu/article/S0168-8278(22)00184-9/fulltext

  2. Brissot P, et al. Hereditary hemochromatosis: From molecules to management. Nat Rev Dis Primers. 2024.
    https://www.nature.com/articles/s41572-024-00432-6

  3. Anderson GJ, Frazer DM. Molecular Pathophysiology of Hereditary Hemochromatosis. Blood. 2025.
    https://ashpublications.org/blood/article/145/10/1575/494221

  4. Kowdley KV, et al. Genetic Testing and Clinical Interpretation of HFE Hemochromatosis. Clin Liver Dis. 2023.
    https://www.clinical-liver-disease.org/article/S1089-3261(23)00022-1/fulltext

 Hemocromatose HFE – Subtipos 


 C282Y Homozigose (C282Y/C282Y)

  • Genética: Mutação C282Y homozigótica no gene HFE.

  • Fisiopatologia: Grave disfunção da hepcidina, aumento da absorção intestinal de ferro de forma descontrolada.

  • Clínica:

    • Progressão lenta, porém significativa, para sobrecarga visceral (fígado, pâncreas, coração, articulações).

    • Maior risco de cirrose, carcinoma hepatocelular (CHC), diabetes, hipogonadismo e cardiomiopatia.

  • Laboratorial:

    • Saturação de transferrina > 60% (homens) e > 50% (mulheres).

    • Ferritina muito elevada (> 1000 ng/mL em casos avançados).

  • Prognóstico:

    • Excelente com diagnóstico e tratamento precoces (flebotomia).


 C282Y/H63D Heterozigose Composta

  • Genética: Um alelo C282Y e um alelo H63D no gene HFE.

  • Fisiopatologia: Disfunção parcial da hepcidina.

  • Clínica:

    • Forma intermediária; sobrecarga moderada de ferro, variabilidade fenotípica importante.

    • Alguns pacientes podem permanecer assintomáticos por toda a vida.

    • Outros podem evoluir com manifestações hepáticas leves a moderadas (fibrose, esteatose).

  • Laboratorial:

    • Saturação de transferrina moderadamente elevada (>45–55%).

    • Ferritina moderada (300–800 ng/mL).

  • Prognóstico:

    • Monitorização clínica é crucial; flebotomias indicadas conforme ferritina e saturação.


 H63D Homozigose (H63D/H63D)

  • Genética: Dois alelos H63D no gene HFE.

  • Fisiopatologia:

    • Mínima disfunção da hepcidina.

    • Mecanismos compensatórios preservados na maioria dos casos.

  • Clínica:

    • Majoritariamente assintomáticos.

    • Em alguns casos, discreta elevação da ferritina e saturação da transferrina em situações de comorbidade associada (síndrome metabólica, obesidade, hepatopatia alcoólica).

    • Raramente evoluem para fibrose hepática isoladamente pela mutação.

  • Laboratorial:

    • Ferritina ligeiramente elevada (200–500 ng/mL).

    • Saturação de transferrina normal ou discretamente elevada.

  • Prognóstico:

    • Excelentes; raramente requerem flebotomia.

    • Conduta: excluir causas secundárias de elevação da ferritina (obesidade, inflamação).


 S65C Portadores e Homozigose (Raro)

  • Genética: Mutação S65C no gene HFE; extremamente rara, especialmente em homozigose.

  • Fisiopatologia:

    • Disfunção hepática e absorção de ferro discretamente aumentadas.

  • Clínica:

    • Portadores simples (heterozigotos) geralmente não apresentam doença clínica.

    • Quando combinada com C282Y (C282Y/S65C), pode haver leve sobrecarga de ferro, mas clinicamente relevante apenas em poucos casos.

  • Laboratorial:

    • Saturação da transferrina normal ou discretamente elevada.

    • Ferritina levemente aumentada.

  • Prognóstico:

    • Risco baixo de evolução para fibrose ou cirrose.

    • Monitorização anual com ferritina e saturação de transferrina recomendada.


 Quadro-Resumo: Gravidade Clínica dos Genótipos HFE

 

GenótipoGravidade ClínicaFrequênciaSaturação de TransferrinaNecessidade de Flebotomia
C282Y/C282YAlta80–90% dos casos clínicosElevadaSim
C282Y/H63DModerada3–5% dos casosModeradaDepende da carga de ferro
H63D/H63DBaixa ou nula<1%Normal ou leve aumentoRaramente
C282Y/S65CLeve a moderadaMuito raraLeve aumentoCasos selecionados
S65C/S65CMuito leveExtremamente raroNormalNão necessário

 Protocolo de Avaliação Clínica nos Portadores de H63D e S65C

  1. Confirmar mutação por genotipagem (HFE genotyping).

  2. Dosar ferritina sérica e saturação da transferrina.

  3. Se ferritina > 500 ng/mL ou saturação > 45%:

    • Investigar causas associadas (síndrome metabólica, alcoolismo, hepatite viral).

    • Se excluídas → considerar sobrecarga leve de ferro pela mutação.

  4. Realizar USG hepática anual se ferritina persistentemente elevada.

  5. Considerar flebotomia apenas se:

    • Ferritina > 1000 ng/mL ou

    • Evidência de lesão hepática (elastografia alterada, biópsia positiva).


 Referências Científicas  

  1. Brissot P, et al. Hemochromatosis: From Molecular Insights to Clinical Practice. Nat Rev Dis Primers. 2024.
    https://www.nature.com/articles/s41572-024-00432-6

  2. European Association for the Study of the Liver (EASL). Clinical Practice Guidelines for Haemochromatosis. J Hepatol. 2022.
    https://www.journal-of-hepatology.eu/article/S0168-8278(22)00184-9/fulltext

  3. Kowdley KV, et al. Hemochromatosis: Genetic Variations and Clinical Implications. Clin Liver Dis. 2023.
    https://www.clinical-liver-disease.org/article/S1089-3261(23)00022-1/fulltext

  4. Santos PCJL, et al. HFE Mutations in Brazilian Patients: Clinical Correlations. Clin Genet. 2024.
    https://onlinelibrary.wiley.com/doi/10.1111/cge.14212


 

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