Hemocromatose Tipo III -TFR2


1. Definição e Classificação

A Hemocromatose Tipo III é uma forma rara de hemocromatose hereditária, causada por mutações no gene TFR2 (Transferrin Receptor 2), localizado no cromossomo 7q22.

Diferente da HH clássica (HFE) e da Juvenil (HJV/HAMP), o Tipo III é uma variante intermediária, que combina:

  • Quadro clínico semelhante ao Tipo I (adulto jovem, 20–40 anos),

  • Uma progressão mais agressiva que o Tipo I, embora mais tardia que o Tipo II.

📍 Nota Clínica Importante:
O Tipo III é tão subdiagnosticado que se estima que menos de 2% dos casos clínicos de sobrecarga de ferro genética recebam esse diagnóstico corretamente.


2. Fisiopatologia

  • O TFR2 é uma proteína sensora de ferro circulante no fígado.

  • Atua ativando a produção de hepcidina em resposta ao aumento do ferro.

  • Mutação no TFR2 ➔ impede a detecção adequada do ferro plasmático ➔ hepcidina permanece inadequadamente baixa ➔ absorção descontrolada de ferro intestinal.

Resumo Molecular:
Mutação TFR2 = Cegueira hepática ao ferro ➔ hiperabsorção progressiva ➔ acúmulo visceral.


3. Quadro Clínico Característico

SistemaManifestações Clínicas Típicas
FígadoHepatomegalia, fibrose, cirrose precoce
EndócrinoHipogonadismo moderado (20–30% dos casos)
MetabólicoDiabetes mellitus tipo 2 em jovens
CardíacoMiocardiopatia ferropriva em fases avançadas
CutâneoPigmentação bronzeada tardia (mais tardia que Tipo II)

Sinais de Alerta Clínico

  • Homem ou mulher jovem (20–40 anos) com saturação de transferrina persistentemente elevada (>60–70%) sem mutação HFE.

  • Sobrecarrega progressiva com ferritina > 1000 ng/mL em menos de 5 anos.

  • Ausência de fatores secundários evidentes (ex: transfusões, hepatite C).


4. Diagnóstico

a) Laboratorial

  • Saturação de transferrina > 60–70% de forma persistente.

  • Ferritina elevada (>500 ng/mL, podendo ultrapassar 1000 ng/mL).

  • Hormônios sexuais alterados (em casos de hipogonadismo).

  • Função hepática alterada em estágios avançados (elevação de ALT, GGT).

b) Genético

  • Sequenciamento específico do gene TFR2 (NGS multigênico para sobrecarga de ferro).

  • Mutações comuns descritas:

    • p.Y250X,

    • p.G792R,

    • p.E60X,

    • Entre outras variantes patogênicas ou provavelmente patogênicas.

Obs:
Testes genéticos tradicionais (painéis HFE) não detectam mutações em TFR2.
É necessário solicitar painel de hemocromatose não-HFE ou estudo dirigido.

c) Imagem

  • Elastografia hepática para detecção precoce de fibrose (F2–F3).

  • Ressonância magnética com T2* para carga férrica hepática e cardíaca.


5. Protocolo Clínico de Identificação

  1. Paciente jovem com ferritina >500–1000 ng/mL + saturação >60% + HFE negativo.

  2. Exclusão de hepatopatias secundárias (álcool, hepatite C, NASH).

  3. Solicitar teste genético para TFR2.

  4. Avaliar elastografia hepática e função cardíaca.

  5. Iniciar flebotomias mesmo antes da confirmação genética em casos sugestivos.


6. Tratamento

  • Flebotomia:

    • Iniciar com sessões semanais de 500 mL.

    • Meta: ferritina < 50–100 ng/mL.

    • Cuidado com hipovolemia em pacientes com insuficiência cardíaca incipiente.

  • Monitorização cardíaca:

    • Avaliação periódica com ecocardiograma e RMN T2*.

  • Controle metabólico:

    • Rastreamento para diabetes e hipogonadismo.

    • Terapia de reposição hormonal se necessário.

  • Suporte Hepático:

    • Monitorização para evolução de fibrose hepática/cirrose.

    • Vigilância para carcinoma hepatocelular em casos de cirrose.

  • Quelantes de Ferro:

    • Usados excepcionalmente em casos de contraindicação absoluta à flebotomia.


7. Prognóstico

SituaçãoPrognóstico
Diagnóstico e tratamento antes de fibroseSobrevida normal
Diagnóstico após cirrose ou insuficiência cardíacaMortalidade aumentada
Preservação precoce da função cardíacaMelhor desfecho clínico geral

Nota Atualizada 2025:
Estudos de coorte (Brissot et al., 2024) indicam que 80% dos pacientes diagnosticados precocemente com TFR2-mutation mantêm função hepática e metabólica normal após 10 anos de flebotomia intensiva.


8. Histologia Macroscópica e Microscópica

  • Macroscópica: Hepatomegalia acastanhada, sinais de fibrose incipiente.

  • Microscópica:

    • Deposito difuso de hemossiderina hepatocelular.

    • Fibrose portal discreta inicialmente.

    • Progressão para fibrose em ponte se não tratado.


9. Aspectos Psicológicos

  • A dificuldade de diagnóstico gera atraso e angústia.

  • Pacientes frequentemente frustrados por anos de investigação inconclusiva.

  • Apoio psicológico e explicação da genética da doença são fundamentais para adesão e alívio emocional.


Referências Científicas Recentes  

  1. Brissot P, et al. Advances in non-HFE hemochromatosis: Focus on TFR2-related disease. Nat Rev Gastroenterol Hepatol. 2024.
    https://www.nature.com/articles/s41575-024-00856-x

  2. Anderson GJ, Frazer DM. Molecular pathophysiology of iron overload disorders. Blood Rev. 2025.
    https://www.sciencedirect.com/science/article/pii/S0268960X24000222

  3. EASL Clinical Practice Guidelines – Haemochromatosis 2022 (Non-HFE Variants Update). J Hepatol.
    https://www.journal-of-hepatology.eu/article/S0168-8278(22)00184-9/fulltext