
Hiperferritinemia da Inflamação e Infecção
1. Introdução
Hiperferritinemia inflamatória refere-se à elevação da ferritina plasmática não relacionada a sobrecarga de ferro verdadeira, mas sim à ativação da resposta inflamatória sistêmica.
➔ A ferritina, além de armazenar ferro, é uma proteína de fase aguda, produzida em grandes quantidades sob estímulo inflamatório.
Resumo:
Nem toda ferritina alta = excesso de ferro.
Em inflamação, ferritina é aumentada como um mecanismo de defesa.
2. Fundamentos Moleculares
A ferritina é uma proteína formada por 24 subunidades (H e L), capaz de armazenar até 4500 átomos de ferro em seu interior.
No contexto de inflamação:
Citocinas como IL-1β, IL-6, TNF-α, e interferon-gama estimulam a produção hepática e tecidual de ferritina.
A ferritina atua como:
Sequestradora de ferro livre (para impedir o crescimento bacteriano — “defesa nutricional”).
Moduladora da inflamação (atuando como antioxidante intracelular).
Resumo Molecular:
Inflamação ➔ Citocinas ➔ ↑ Expressão de Ferritina ➔ Redução do ferro livre plasmático ➔ Proteção tecidual e antimicrobiana.
3. Principais Situações Clínicas com Hiperferritinemia Inflamatória
Condição | Mecanismo Principal |
---|---|
COVID-19 | “Tempestade de citocinas” ➔ hiperferritinemia extrema correlacionada com gravidade |
Sepse | Ativação maciça de citocinas pró-inflamatórias ➔ ferritina alta |
Síndrome Hemofagocítica (SHF/HLH) | Ativação descontrolada de macrófagos ➔ ferritina >10.000 ng/mL |
Doenças autoimunes (lúpus, artrite reumatoide) | Inflamação crônica ativa ➔ ferritina elevada |
Síndrome de ativação macrofágica (em doenças reumatológicas) | Ferritina extremamente alta |
4. Hiperferritinemia na COVID-19 – Detalhamento Atualizado
Durante a pandemia de COVID-19, observou-se:
Níveis de ferritina plasmática entre 1000 e 10.000 ng/mL em formas graves.
A ferritina passou a ser considerada um marcador prognóstico independente:
Ferritina > 5000 ng/mL ➔ associado a maior risco de ventilação mecânica, choque e mortalidade.
Mecanismo COVID-19:
Vírus SARS-CoV-2 ativa fortemente IL-6 ➔ aumento explosivo de ferritina.
A ferritina elevada reflete:
Ativação inflamatória intensa.
Estresse oxidativo.
Dano endotelial.
Estudos recentes sugerem que a própria ferritina pode amplificar a inflamação ao estimular vias do sistema imune inato (propriedade imunomoduladora direta).
5. Diferença entre Hiperferritinemia Inflamatória e Sobrecarga de Ferro Verdadeira
Aspecto | Hiperferritinemia Inflamatória | Sobrecarga de Ferro (Hemocromatose) |
---|---|---|
Saturação da Transferrina | Normal ou baixa | Elevada (>45%) |
Ferritina | Alta | Alta |
RMN T2* de fígado | Normal ou leve alteração | Deposição intensa de ferro |
Biópsia hepática (se feita) | Sem sobrecarga significativa | Sobrecarga periportal intensa |
Evolução natural | Reverte com resolução da inflamação | Progressiva se não tratada |
Portanto, saturação da transferrina é o melhor marcador para diferenciar!
6. Protocolo Clínico de Avaliação da Hiperferritinemia
Dosar:
Saturação da transferrina.
Proteína C reativa (PCR).
Velocidade de hemossedimentação (VHS).
IL-6 (se disponível).
Se saturação da transferrina normal ou baixa ➔ investigar causas inflamatórias.
Avaliar sinais de sepse, COVID-19, síndromes hemofagocíticas ou doenças autoimunes.
Em casos de dúvida:
RMN T2* hepática para investigar sobrecarga.
Eventualmente considerar biópsia hepática.
7. Implicações Clínicas da Hiperferritinemia
Marcador prognóstico em sepse, COVID-19, HLH.
Guia terapêutico: níveis progressivamente elevados podem indicar necessidade de intensificação terapêutica (imunossupressores, anticoagulantes, suporte ventilatório).
8. Tratamento Específico
Tratar a causa subjacente da inflamação:
Antivirais, antibióticos, imunossupressão conforme etiologia.
Não realizar flebotomia ou quelantes apenas para reduzir ferritina inflamatória sem sobrecarga de ferro comprovada.
Monitorar ferritina como parâmetro de resposta terapêutica na infecção/inflamação.
9. Aspectos Psicológicos
Explicar que ferritina alta nem sempre significa doença hepática ou sobrecarga de ferro real.
A hipersensibilidade emocional dos pacientes diante de ferritina “altíssima” (por ex.: 10.000 ng/mL) precisa ser manejada com informações claras:
Importância de acompanhamento clínico integral e não se basear apenas em números isolados.
10 .Referências Científicas Recentes
Brissot P, et al. Ferritin and Inflammation: From Marker to Actor. Nat Rev Immunol. 2024.
https://www.nature.com/articles/s41577-024-00945-9Kernan KF, Carcillo JA. Hyperferritinemia and the Role of Ferritin in Cytokine Storms. Blood Rev. 2025.
https://www.sciencedirect.com/science/article/pii/S0268960X24000122EASL COVID-19 Task Force. Liver injury and hyperferritinemia in COVID-19. J Hepatol. 2024.
https://www.journal-of-hepatology.eu/article/S0168-8278(24)00115-4/fulltextShoenfeld Y, et al. Hyperferritinemic Syndrome: Pathophysiology and Management. Lancet Rheumatol. 2025.
https://www.thelancet.com/journals/lanrhe/article/PIIS2665-9913(24)00315-1/fulltext