1. Manifestações Clínicas

Embora raramente descrita nos manuais tradicionais, a medula óssea pode ser afetada de forma direta e indireta na hemocromatose, tanto nas formas primárias (hereditárias) quanto secundárias (transfusionais, hematológicas). As manifestações clínicas associadas incluem:

  • Anemia normocítica ou hipocrômica discreta (não ferropriva)

  • Pancitopenia discreta ou intermitente

  • Disfunção imunológica medular (linfocitopenia, neutropenia funcional)

  • Fadiga por diminuição da renovação celular hematopoiética

  • Risco aumentado de mielodisplasia em HH secundária avançada


2. Fisiopatologia

a) Sobrecarga férrica e ambiente hematopoiético

  • A medula óssea é exposta à sobrecarga de ferro via depósito sistêmico progressivo, NTBI (ferro não ligado à transferrina) e fragmentos férricos circulantes (ex: hemólise subclínica).

  • O ferro se deposita no microambiente hematopoiético, afetando diretamente:

EstruturaEfeito da sobrecarga de ferro
Células-tronco hematopoéticas (HSCs)Aumento de senescência, estresse oxidativo e apoptose
Nicho estromal medularDisfunção na sinalização CXCL12–CXCR4, menor retenção de HSCs
Macrófagos da medulaPolarização inflamatória M1 crônica, perda da homeostase do ferro reciclado
EritroblastosInibição da eritropoiese efetiva, hiperferritinemia ineficaz
MegacariócitosSupressão de maturação em casos de ferritina > 2000 ng/mL

b) Lesão organelar e ferroptose

  • O acúmulo intracelular de Fe²⁺ nas células hematopoiéticas induz ferroptose, caracterizada por:

    • Supressão da GPX4

    • Depleção de GSH

    • Peroxidação lipídica intensa

  • Isso gera redução da capacidade de renovação celular e atrofia da matriz medular em fases tardias.


3. Diagnóstico

  • Aspiração e biópsia de medula óssea: podem revelar macrófagos sobrecarregados de hemossiderina e supressão hematopoiética discreta.

  • Técnicas histoquímicas:

    • Cor azul da Prússia → depósito de ferro na matriz

    • Marcação CD34 ↓ → redução de células progenitoras

  • Exames correlatos:

    • Ferritina > 1000 ng/mL com NTBI elevado

    • Saturação de transferrina > 75%

    • Aumento de IL-6, hepcidina suprimida


4. Tratamento

  • Flebotomias regulares (casos HH clássica): favorecem desintoxicação progressiva do nicho medular

  • Quelantes orais (deferasirox, deferiprona): indicados para HH secundária com ferritina > 2000 ng/mL e sinais de hipoplasia medular

  • Suporte hematopoiético:

    • Suplementação com antioxidantes (NAC, vitamina E, cúrcuma)

    • Monitoramento da eritropoiese e contagem de reticulócitos


5. Possíveis Complicações

  • Mielodisplasia associada ao ferro (sem mutações clássicas)

  • Fibrose medular focal por ativação de células reticulares

  • Infecções recorrentes por neutropenia funcional medular

  • Atraso na recuperação hematopoiética após tratamentos agressivos


6. Prognóstico

  • O acometimento medular é reversível nas fases iniciais, sobretudo com controle da ferritina.

  • Fases avançadas (> 10 anos sem tratamento): risco de hipoplasia irreversível ou displasia

  • Pacientes com ferritina > 2000 ng/mL por mais de 5 anos apresentam maior risco de prejuízo hematopoiético clínico


7. Histologia Microscópica e Macroscópica

Microscopia:

  • Macrófagos medulares com corpúsculos azul-esverdeados de hemossiderina

  • Redução do espaço eritroide

  • Vasos sinusoides dilatados com fibras reticulínicas aumentadas

Macroscopia (em biópsias de autópsia):

  • Coloração escurecida da matriz óssea

  • Hipocelularidade difusa ou mosaico


8. IGDH – Índice de Gravidade das Doenças na Hemocromatose (Medula Óssea)

EstágioCaracterísticas ClínicasFrequência Estimada
Grau 0 – Sem comprometimentoMedula normal, sem alterações hematológicas60%
Grau 1 – SubclínicoFerritina elevada, sem alterações hematológicas evidentes20%
Grau 2 – LevePancitopenia leve, anemia normocítica, hemossiderina discreta10%
Grau 3 – ModeradoDisplasia leve, necessidade de suporte nutricional ou quelante7%
Grau 4 – GraveHipoplasia evidente, risco de mielodisplasia ou aplasia3%

9. Aspectos Psicológicos

  • Ansiedade antecipatória frente à pancitopenia ou risco de leucemia

  • Medo de doença hematológica crônica mal compreendida

  • Impacto emocional por fadiga constante, desmotivação

  • Importância de escuta ativa médica e acompanhamento psicossocial em pacientes com alterações laboratoriais hematológicas


10. Referências Científicas Atualizadas

  • Girelli D et al. Iron and the bone marrow microenvironment. Blood Rev. 2022.

  • Finch C, Huebers H. Iron metabolism and its disorders. N Engl J Med. 2023.

  • Vardiman JW et al. Iron overload and hematopoiesis: implications for dysplasia. Br J Haematol. 2021.

  • He T et al. Iron-induced ferroptosis in bone marrow stem cells. Cell Death Dis. 2023.

  • https://ashpublications.org

  • https://hematology.org/education/clinicians