
1. Introdução
O ferro é um elemento essencial para a vida, fundamental para a formação da hemoglobina, respiração celular, divisão celular e diversos processos metabólicos.
Por ser também altamente tóxico quando em excesso, seu metabolismo é rigidamente controlado por mecanismos moleculares finamente ajustados.
O entendimento do metabolismo do ferro é essencial para compreender a fisiopatologia da hemocromatose hereditária (HH) e outras condições associadas à sobrecarga férrica.
2. Absorção Intestinal
A absorção do ferro ocorre no duodeno e jejuno proximal, por dois caminhos principais:
Ferro heme:
Proveniente de carne vermelha.
Absorvido diretamente via transportador HCP1.
Ferro não-heme:
Mais comum em vegetais.
O Fe3+ é reduzido a Fe2+ pela enzima Dcytb.
O Fe2+ entra nos enterócitos pela transportadora DMT1.
Após a entrada, o ferro pode:
Ser armazenado como ferritina.
Ser exportado para a circulação via ferroportina (FPN1), regulada pela hepcidina.
3. Transporte e Recirculação
O ferro exportado entra na circulação e se liga à transferrina.
Cada molécula de transferrina transporta 2 átomos de Fe3+.
A maior parte do ferro é entregue à medula óssea para eritropoiese.
Após a hemólise, o ferro é reciclado pelos macrófagos do sistema reticuloendotelial (fígado, baço, medula).
4. Armazenamento
O ferro é armazenado principalmente no fígado sob a forma de ferritina e hemossiderina.
Pequenas quantidades estão presentes em músculo (mioglobina) e enzimas.
5. Regulação pela Hepcidina
A hepcidina é um peptídeo hepático que regula negativamente a liberação de ferro.
Quando o ferro corporal está elevado:
A hepcidina se liga à ferroportina.
Induz sua internalização e degradação.
Inibe a exportação de ferro dos enterócitos, macrófagos e hepatócitos.
Quando os níveis de ferro estão baixos, a hepcidina é suprimida, permitindo maior liberação e absorção.
6. Principais Proteínas Envolvidas
Proteína | Função |
---|---|
DMT1 | Importa Fe2+ nos enterócitos |
Dcytb | Reduz Fe3+ para Fe2+ |
HCP1 | Transporta ferro heme |
Ferroportina (FPN1) | Exporta Fe2+ para o plasma |
Hepcidina | Inibe ferroportina |
Transferrina | Transporte plasmático do ferro |
Ferritina | Armazenamento intracelular |
TfR1 e TfR2 | Receptores celulares de transferrina |
7. Alteracões na Hemocromatose Hereditária
Baixa produção ou ação deficiente da hepcidina (HH tipo 1, 2, 3)
Ferroportina não responsiva à hepcidina (HH tipo 4)
Aumento da absorção intestinal e liberação de ferro, mesmo em estado de sobrecarga
Saturamento da transferrina > 45%, surgimento de ferro não-transferrina ligado (NTBI)
Impregnação tecidual progressiva (fígado, pâncreas, coração)
🔹
8. Referências
Nemeth E et al. Hepcidin regulates cellular iron efflux by binding to ferroportin and inducing its internalization. Science. 2004.
Fleming RE, Ponka P. Iron overload in human disease. N Engl J Med. 2012.
Pietrangelo A. Hereditary hemochromatosis: pathogenesis, diagnosis, and treatment. Gastroenterology. 2010.
Brissot P et al. Clinical aspects of hemochromatosis. Transfus Clin Biol. 2010.
1. A economia de um micronutriente essencial
O ferro (Fe) é simultaneamente vital e potencialmente tóxico. Ele participa da respiração celular, da síntese de DNA, do metabolismo de radicais livres e de inúmeros processos enzimáticos. Contudo, o organismo carece de um mecanismo ativo de excreção; por isso, o equilíbrio entre absorção, reciclagem, armazenamento e perdas inevitáveis deve ser rigidamente regulado. Em um adulto saudável de 70 kg, o corpo contém cerca de 3-4 g de ferro, distribuídos principalmente na hemoglobina (~65 %), na ferritina/hemossiderina (~25 %), na mioglobina (~10 %) e em enzimas diversas.
2. Circuito Sistêmico do Ferro
Diariamente, cerca de 25 mg de ferro são requeridos para a eritropoiese. Quase todo esse metal provém da reciclagem macrofágica de hemácias senescentes no baço e no fígado; apenas 1-2 mg precisam ser absorvidos no duodeno para compensar pequenas perdas (descamação de pele, sudorese, epitélio intestinal e, nas mulheres, perda menstrual).
3. Absorção Intestinal
A absorção ocorre principalmente no duodeno e jejuno proximal e envolve duas vias independentes:
Ferro não-heme:
No lúmen, o Fe³⁺ dietético é reduzido a Fe²⁺ pela ferrirreductase Dcytb, um processo favorecido pela vitamina C.
Fe²⁺ atravessa a borda em escova por meio do DMT1 (SLC11A2), acoplado à entrada de prótons.
Ferro heme:
O complexo heme é internalizado pela proteína HCP1; heme oxigenase depois libera Fe²⁺ no citoplasma.
Uma vez na célula, o ferro pode ser temporariamente armazenado em ferritina ou exportado para o plasma pela ferroportina (FPN1), processo que requer a oxidase hephaestin para converter Fe²⁺ em Fe³⁺ – a forma que se liga à transferrina circulante.
4. Transporte Plasmático
A transferrina (Tf) é uma glicoproteína bilobada capaz de transportar dois átomos de Fe³⁺. Em condições normais, ela circula com ~30 % de saturação, garantindo ampla capacidade tampão contra o ferro livre, altamente reativo. Quando a saturação ultrapassa 60 %, surge ferro não ligado à transferrina (NTBI), que entra em tecidos sensíveis (fígado, pâncreas, coração) via transportadores como ZIP14 e precipita toxicidade oxidativa.
5. Captação Celular e Reciclagem Macro-Eritroide
As células necessitadas expressam TFR1, que reconhece o complexo Tf-Fe. Após endocitose, o pH ácido do endossomo favorece a liberação do Fe²⁺, que alcança o citosol via DMT1 endossomal. Nos macrófagos da polpa vermelha esplênica, hemácias envelhecidas são fagocitadas; o heme é clivado pela heme-oxigenase-1, liberando ferro que pode:
Reabastecer a ferritina macrofágica;
Ser exportado por ferroportina para abastecer a medula óssea.
Esse processo, chamado reciclagem eritroide, é responsável por 90 % do ferro que chega diariamente à eritropoiese.
6. “Cofre” Celular: Ferritina, Hemosiderina e o Controle IRP/IRE
Para evitar a geração de radicais de Fenton no citoplasma, o ferro excedente é estocado na ferritina, uma proteína-cápsula capaz de alojar até 4 500 átomos de ferro em seu núcleo mineral Fe³⁺-fosfato. Quando a demanda excede a oferta, o complexo de proteínas reguladoras de ferro (IRP1/IRP2) se liga a elementos responsivos (IREs) no mRNA, reduzindo a tradução de ferritina (poupando ferro) e aumentando a de TFR1 (promovendo captação). Em sobrecarga crônica, a ferritina degrada-se parcialmente em hemossiderina insolúvel.
7. Reguladores Endócrinos e Paracrinos
Eixo | Estímulo | Efeito sobre hepcidina | Impacto clínico |
---|---|---|---|
BMP-SMAD (fígado) | Aumento do ferro plasmático / hepático | ↑ Hepcidina | Homeostase normal; defeito → hemocromatose HFE |
IL-6 / JAK-STAT3 | Inflamação | ↑ Hepcidina | Anemia de doença crônica |
Eritropoietina / ERFE | Expansão eritroide | ↓ Hepcidina | Talassemia, pós-hemorragia |
Hipóxia / HIF-2α | Baixa PaO₂ | ↓ Hepcidina + ↑ DMT1 /FPN | Adaptação de altitude |
Estresse crônico | Cortisol/catecolaminas | ↑ Hepcidina | Redução leve de ferro sérico durante estresse agudo |
8. Perdas de Ferro
Como não há via excretória ativa, a perda ocorre por:
Descamação de pele e mucosas (~0,5 mg/dia);
Sangramento menstrual (média 1,5 mg/dia em mulheres em idade fértil);
Gestação/lactação (até 1 g adicionais);
Doadores de sangue (200-250 mg por doação).
9. Ferro, Mitocôndria e Ferroptose
O ferro inserido em enzimas da cadeia respiratória mitocondrial sustenta a produção de ATP. Quando o pool lábil de ferro (LIP) excede 5-10 µM, a reação de Fenton com peróxido de hidrogênio gera radical hidroxila (•OH), iniciando peroxidação lipídica. Se não houver resposta antioxidante adequada (GPX4, GSH), a célula pode entrar em ferroptose, morte dependente de ferro que está na mira da oncologia e das neurociências como alvo terapêutico.
10. Integração Clínica
Qualquer desbalanço prolongado entre entrada e saída – seja por deficiência de hepcidina (hemocromatose), perda sanguínea crônica (anemia ferropriva) ou inflamação resistente (anemia da inflamação) – leva a manifestações clínicas distintas que refletem este intrincado circuito. As terapias se baseiam em flebotomia, quelantes, mini-hepcidinas ou modulação da via TMPRSS6-siRNA para restaurar o eixo hepcidina-ferroportina.
Referências Selecionadas
Ganz T, Nemeth E. Iron Homeostasis in Physiology and Disease. Blood 2025.
Hentze MW et al. Balancing Cellular Iron Nat Rev Mol Cell Biol 2024.
Muckenthaler MU et al. Systemic Iron Regulation Under Stress. FASEB Bioadv 2024.
Fleming RE, Ponka P. Iron and the Liver. GeneReviews 2024.
Torti SV, Conrad M. Ferroptosis and Disease. Nat Rev Drug Discov 2025.