
1. Manifestações Clínicas
A hemocromatose pode comprometer progressivamente todo o trato gastrointestinal, inclusive órgãos acessórios (fígado, pâncreas), por impregnação férrica sistêmica. Entre as manifestações clínicas digestivas mais comuns e/ou subdiagnosticadas estão:
Dor abdominal crônica epigástrica ou difusa
Hepatomegalia e desconforto em hipocôndrio direito
Náuseas, sensação de plenitude precoce
Constipação crônica associada à disbiose
Diarreia intermitente (menos comum)
Intolerâncias alimentares (ferro-induzidas)
Hipersensibilidade visceral
Inapetência, perda de peso ou obesidade associada
Sintomas funcionais intestinais (mimetizando SII)
2. Fisiopatologia
a) Estômago e esôfago
Menor expressão de hepcidina gástrica → maior absorção gástrica de ferro
Oxidação de mucosa gástrica → gastrite férrica (detectada na endoscopia como pigmentação escura)
Disfunção neuromuscular por ferro → refluxo gastroesofágico secundário
b) Intestino delgado
Maior expressão de DMT1 e ferroportina em enterócitos → hiperabsorção
Aumento de NTBI (ferro não transferrina-ligado) no lúmen intestinal
Estresse oxidativo da mucosa com aumento de citocinas e ativação de TLR4
Disbiose intestinal → menor diversidade microbiana, maior translocação bacteriana
Alteração na produção de butirato, propionato e serotonina entérica
c) Cólon
Risco potencial para colite oxidativa crônica
Relação investigativa com doenças inflamatórias intestinais (retocolite ulcerativa, Crohn) em estudos genéticos associados a HFE
d) Fígado e pâncreas
Ver seções específicas já publicadas
3. Diagnóstico
a) Exames laboratoriais
Ferritina sérica, saturação de transferrina
Alfa-1 antitripsina (diferenciar de hepatopatia autoimune)
Marcadores de disbiose: ácido succínico, ácido láctico fecal, perfil de SCFA
Avaliação da permeabilidade intestinal (teste de lactulose-mannitol)
b) Endoscopia digestiva alta
Gastrite férrica pigmentada
Erosões esofágicas e esofagite química
Biópsias podem mostrar depósitos de ferro em macrófagos da mucosa
c) Colonoscopia
Raramente alterada, mas útil para avaliar inflamação de cólon
Biópsias com coloração de Perls podem revelar impregnação férrica leve focal
d) Microbiota intestinal
Avaliação por metagenômica 16S rRNA (ver seção de Metagenômica)
Testes comerciais como GI-MAP ou Biomesight (ainda com uso limitado no Brasil)
4. Tratamento
a) Geral
Controle da sobrecarga férrica por flebotomia
Dieta anti-inflamatória intestinal (baixo FODMAP se necessário)
Redução de ferro heme e álcool
Suporte à barreira intestinal (glutamina, zinco, quercetina)
Probióticos de cepas específicas: Lactobacillus plantarum, Bifidobacterium breve, Saccharomyces boulardii
Acompanhamento com gastroscopias seriadas quando sintomático
b) Modulação da microbiota
Prebióticos: fibras solúveis (inulina, goma acácia)
Suplementação com pós-bióticos: butirato de sódio
c) Fitoterapia e integração
Uso de cúrcuma lipossomada, aloe vera, camomila e espinheira santa sob supervisão médica
5. Possíveis Complicações
Colangite esclerosante secundária por dano oxidativo crônico
Gastrite atrófica crônica
Doença hepática avançada (ver capítulo Hepático)
Pancreatite crônica funcional
Carcinogênese colônica (relato raro, porém teórico)
Disbiose refratária e SIBO pós-flebotomia
6. Prognóstico
Variável conforme o estágio da doença e adesão ao tratamento
Risco significativo de progressão para disfunção hepatopancreática se não diagnosticado precocemente
Com manejo adequado e prevenção de estressores (ex: álcool, dieta desbalanceada), pode haver estabilização e regressão de manifestações
7. Histologia (quando aplicável)
Pigmentação férrica visível com coloração de Perls
Infiltrado linfoplasmocitário leve em mucosa gástrica ou cólica
Atrofia glandular em casos avançados
8. IGDH – Índice de Gravidade das Doenças na Hemocromatose (Sistema Digestivo)
Nível | Manifestações Clínicas | Comprometimento Funcional |
---|---|---|
0 | Nenhum sintoma digestivo | Função normal intestinal e gástrica |
I | Dispepsia leve, constipação | Disbiose intestinal leve e transitória |
II | Gastrite férrica, distensão, dor abdominal recorrente | Alterações de permeabilidade e resposta inflamatória subclínica |
III | Diarreia crônica, intolerância alimentar, disbiose persistente | Redução da absorção, possível má digestão funcional |
IV | Pancreatite funcional, colite crônica oxidativa, perda ponderal | Necessidade de suporte nutricional e risco de progressão hepática |
9. Aspectos Psicológicos Associados
Ansiedade antecipatória relacionada à dor abdominal
Frustração por diagnósticos gastrointestinais inconclusivos
Fadiga emocional por restrições alimentares crônicas
Sintomas funcionais amplificados por estresse (intestino-cérebro)
Melhora da autoestima e qualidade de vida após diagnóstico e início do tratamento adequado
10. Referências Científicas
Powell EE et al. Hemochromatosis and gastrointestinal involvement. Nat Rev Gastroenterol Hepatol. 2022.
Bardou-Jacquet E et al. Digestive manifestations of hereditary hemochromatosis. J Clin Gastroenterol. 2023.
Girelli D et al. Iron overload, dysbiosis and gastrointestinal health. Hepatol Int. 2021.
NIH – Genetic and Rare Diseases (GARD).
UpToDate: Hereditary hemochromatosis and the digestive system.
Scielo Brasil – RBHH. Revisões integradas sobre sobrecarga férrica e digestão.