1. Manifestações Clínicas

A hemocromatose afeta múltiplas glândulas endócrinas por acúmulo progressivo de ferro, com impacto hormonal sistêmico e expressões clínicas variadas e muitas vezes silenciosas. Entre as manifestações mais comuns estão:

  • Hipogonadismo hipogonadotrófico (principal e mais precoce)

  • Diabetes mellitus (tipo 2 ou insulinopenia progressiva)

  • Hipotireoidismo subclínico ou clínico

  • Insuficiência adrenal (secundária ou primária)

  • Hipopituitarismo parcial

  • Disfunções paratireoideanas (hipoparatireoidismo discreto)

  • Desregulação da secreção de hormônio do crescimento e prolactina

Pacientes podem apresentar redução de libido, amenorreia, ginecomastia, infertilidade, fadiga intensa, perda de massa muscular e alterações psicoemocionais crônicas.


2. Fisiopatologia

O ferro livre (NTBI) circulante e a saturação da transferrina promovem impregnação tecidual nas glândulas ricas em capilares fenestrados e receptores de transferrina, levando a:

a) Hipotálamo-Hipófise:

  • Lesão oxidativa dos neurônios hipotalâmicos → ↓ GnRH, TRH e CRH

  • Acometimento parcial da adeno-hipófise → ↓ LH, FSH, TSH, ACTH

  • Preservação inicial de GH e PRL (atingidos tardiamente)

b) Pâncreas endócrino:

  • Acúmulo de ferro nas ilhotas de Langerhans (células beta)

  • ↓ secreção de insulina → diabetes insulinopeno

  • Preservação relativa de células alfa e delta

c) Tireóide:

  • Estresse oxidativo na célula folicular

  • Redução da conversão periférica de T4 em T3

  • Potencial relação com autoimunidade latente

d) Adrenais:

  • Atrofia cortical progressiva por lesão mitocondrial

  • Redução da secreção de cortisol e aldosterona


3. Diagnóstico

  • Hipogonadismo: LH/FSH baixos ou inapropriados com testosterona/estradiol baixos

  • Diabetes: glicemia de jejum, HbA1c, curva glicêmica, peptídeo C

  • Tireoide: TSH, T4 livre, T3 reverso

  • Adrenal: cortisol basal + teste de estimulação com ACTH

  • Hipófise: avaliação completa de eixos hormonais, RM de sela túrcica

  • Testes auxiliares: ferritina > 500 ng/mL em homens e > 300 ng/mL em mulheres, TS > 45%


4. Tratamento

a) Controle da Sobrecarga Férrica

  • Flebotomias seriadas como base do tratamento

  • Quelantes (deferasirox) em casos de anemia ou contraindicação à flebotomia

  • Redução da ferritina abaixo de 100 ng/mL como alvo endocrinológico

b) Reposição Hormonal (caso indicado)

  • Testosterona IM ou transdérmica, estrogênios + progesterona

  • Levotiroxina para hipotireoidismo

  • Insulina ou antidiabéticos orais conforme fenótipo

  • Hidrocortisona em deficiência adrenal

  • Gonadotrofinas em infertilidade masculina com desejo reprodutivo


5. Possíveis Complicações

  • Osteoporose precoce e fraturas por hipogonadismo crônico

  • Impotência sexual, infertilidade, ginecomastia persistente

  • Acidose láctica e cetoacidose diabética

  • Crises adrenalinas sob estresse

  • Coma mixedematoso ou crises tireotóxicas raras


6. Prognóstico

  • Reversibilidade parcial do hipogonadismo em fases iniciais

  • Progressão do diabetes mesmo com redução do ferro se houver fibrose pancreática

  • Melhora clínica global com normalização dos níveis férricos

  • Melhores desfechos com diagnóstico precoce e abordagem multidisciplinar


7. Histologia Microscópica e Macroscópica

  • Pigmentação marrom-escura de hipófise, tireoide e pâncreas

  • Depósitos de hemossiderina em células endócrinas (visualização com azul da Prússia)

  • Desorganização do eixo hipotalâmico-hipofisário


8. Índice de Gravidade das Doenças na Hemocromatose (IGDH) – Endócrino

 

EstágioDescriçãoPrevalência aproximada
0Sem disfunção hormonal~40%
IAlterações subclínicas hormonais~25%
IIDisfunção hormonal leve (1 eixo)~15%
IIIDisfunção hormonal múltipla compensada~10%
IVInsuficiências glandulares com impacto sistêmico~10%

9. Aspectos Psicológicos

  • Fadiga crônica associada a hipogonadismo e hipotireoidismo

  • Quadro depressivo resistente ao tratamento convencional

  • Comprometimento de autoestima por disfunção sexual

  • Isolamento social e ansiedade em jovens com infertilidade

  • Apoio psicoterapêutico e abordagem integrativa (florais, meditação guiada) podem ser úteis

Fontes Científicas Atualizadas

  • Girelli D, et al. Endocrine involvement in hereditary hemochromatosis. Nat Rev Endocrinol. 2022.

  • Brissot P, et al. Iron overload and endocrine dysfunction: From mechanism to clinical practice. Lancet Diabetes Endocrinol. 2021.

  • McDermott JH et al. Gonadal dysfunction and infertility in hereditary hemochromatosis. Andrology. 2020.

  • Pietrangelo A. Hereditary hemochromatosis: Pathogenesis, diagnosis, and treatment. Hepatology. 2023.